domingo, 30 de novembro de 2008

A Trágica Morte da Patinha



EDIÇÃO ESGOTADA
A Trágica Morte da Patinha e outros contos é o livro de estréia do escritor pernambucano Fernando Farias. São 32 histórias curtas marcadas pelo surrealismo e provocações reflexivas, “verdadeiros torpedos”, que chamam a atenção pela forma simples, coloquial numa aura de magia.O autor explica que “não tem compromisso com a coerência”, sendo cada conto uma peça de um quebra-cabeça. Revela que não tem um estilo definido e não pretende se ater a nenhum. “Isso quebraria a criatividade”, afirma. Mas não perde o humor, mesmo quando é cruel, ou quando afina a faca contra as religiões, o machismo e as superstições.Uma das magias é o conteúdo dinâmico dos contos incluídos num pequeno livro de 84 páginas, em formato pocket, quase de bolso, que permitiu baratear os custos editorais e ser vendido apenas a R$10,00. Outro detalhe é que a maioria dos contos foi ilustrada pelo artista Hideraldo Montenegro.
A prosa enxuta de um escritor que não chora
(estava apenas cortando cebolas)
Por Johnny Martins
*

O livro é pequeno, e talvez coubesse naquela frase, já muito clichê, que diz: “é nos menores frascos que se encontram os melhores perfumes”. O escritor Fernando Farias, em seu livro A trágica morte da Patinha e outros contos, aliás, não rejeita os clichês. Ao contrário, o livro traz um humor que acolhe frases cristalizadas e idéias preestabelecidas para depois subvertê-las, fazendo do óbvio sua matéria-prima e arrancando dele uma ironia que mira sua cortante ponta em “certezas” e “verdades” comuns em nosso cotidiano. O conto que abre o livro ― cuja ironia e transgressão já se apresentam no título: Deus acredita em mim ― dá-nos, de pronto, um panorama das subversões e da empreitada literária irreverente que atravessa a obra, tratando de questões existenciais e socioculturais através de narrativas deliciosamente cativantes e divertidas, mas sem deixar que o convite a reflexões sérias se dissolva no riso. Engana-se quem pensa que o riso desfaz a seriedade de tudo. A subversão de uma ordem estabelecida pode provocar o riso, e isso sempre foi considerado uma ameaça às “verdades” e “certezas” justamente porque, ao representar a realidade de forma invertida (e divertida), o/a artista faz ver seus detalhes com mais nitidez e menos autoridade, enquanto que, ao mesmo tempo, sugere outra forma de percebê-las e de pensá-las. Portanto, conforme reflete Henri Bérgson em sua famosa obra sobre o significado do riso: “[...] rimos do réu que se impõe ao juiz, da criança que pretende dar lições a seus pais, enfim do que vem a se classificar sob a rubrica do «mundo invertido».”[1] O mundo invertido que Fernando Farias divertidamente elabora se projeta sobre várias dimensões da vida cotidiana, principalmente nos contos: Homem não chora, Um dia estranho, Festa de 15 anos, Natural, Brincadeira de Criança, Romeu e Julieta Parte II e Alpha de Centauro. A ênfase num “mundo invertido” é tão notável na obra, que se radicaliza na própria escrita, ao nos depararmos com o conto Um dia estranho, no qual as letras “resolveram mudar de lugar”. Estamos, pois, diante de um escritor atento à matéria de que é feita a arte literária: a palavra. As inversões avançam ainda sobre questões sociais (Natural), sobre o cânone literário ocidental (Romeu e Julieta Parte II) e sobre dogmas morais e religiosos (Alpha de Centauro). No caso de Alpha de Centauro, este é um conto particularmente interessante e conduz o leitor por uma engenhosa originalidade discursiva. Enquanto cá estamos de camisinha em punho, pelejando aterrorizados/as contra uma gravidez indesejada ou contra uma doença que possa nos levar à morte, surge nessa narrativa a militância de espermatozóides em favor da vida. Sem querer estragar a deliciosa leitura desse conto, adianto apenas que ele traz uma proposta sobre a camisinha bem mais criativa do que o tédio das intermináveis discussões entre os cientistas e o Vaticano.
Farias usa a simplicidade da linguagem como instrumento de comunicação, estilizando temas cotidianos e ressignificando o banal, com evidente percepção de como a linguagem traz em si o poder de revelar todo um universo ideológico.
Importa lembrar que, na interação social, é sobretudo através da identificação da linguagem do outro que o emolduramos em determinados contextos e características; entre esses aspectos, poderíamos citar: classe social, grau de erudição, idade e gênero (masculino/feminino). No livro Questões de literatura e de estética, Mikhail Bakhtin reflete sobre a influência desses elementos, que se revelam na linguagem e marcam a dimensão ideológica dos indivíduos e os símbolos que a permeiam, chegando à conclusão de que é a partir da representação “orquestrada” das diversas linguagens sociais que um escritor consegue elaborar seu universo ficcional e caracterizar seus personagens. Ou seja: um escritor trabalha com a imagem da linguagem. Pode-se ter um bom exemplo dessa conclusão de Bakhtin no conto Homem não chora, cujo título retoma um clichê sobre a masculinidade. Nesse conto, Fernando Farias se apropria, através da linguagem, de estereótipos ligados ao universo feminino e inverte esses estereótipos ao reelaborá-los a partir de lamentos de uma voz masculina:
[...] É que estava cortando cebolas para temperar a carne, refogar o arroz, para o molho do macarrão. [...] Ela sempre encontra um motivo para brigar comigo. Mesmo quando coloco perfume de alfazema. Ela diz que se mistura ao cheiro do tempero e fica repugnante. (Farias, 2005:11).
Pode-se dizer muito sobre esse conto, mas o que chama mais a atenção nele é justamente o convite a problematizar idéias preestabelecidas que comumente temos a respeito dos homens e das mulheres, e de suas relações. Essa problematização se desdobra ainda, mas de outra forma, em Alma gêmea, com um desfecho tão inusitado quanto irreverente.
O estilo de Fernando Farias é enxuto, as narrativas são curtas ― 31 contos distribuídos em menos de 84 páginas ― e os pontos finais dificilmente aparecem além de duas linhas. Essa economia está alinhada com o caráter veloz do nosso cotidiano pós-moderno e com boa parcela da produção literária contemporânea.
Em Festa de 15 anos ― esse ritual cafona que perdeu o sentido desde o século passado e que ainda é insistente em nosso imaginário burguês ― tem uma protagonista que se despe da aura de pureza e faz seu début nos salões da vida adulta, não aqueles do glamour sonhado nos moldes burgueses, mas aqueles da realidade cheia de violência. E aqui, mais uma vez, temos um convite a participar, junto com o narrador, da tentativa de se colocar de forma subversiva nas saias justas ― pero no mucho ― que freqüentemente as mulheres são obrigadas a vestir.
O clichê de “pureza”, desta vez aquele conferido às crianças, também é desconstruído em Brincadeira de criança, restituindo aos “anjinhos” seu lado humano ― e, portanto, passível de perversidades. O final, digamos, “freudiano” desse conto reforça seu caráter transgressor se nos lembrarmos de que Freud ousou localizar justamente na infância os principais elementos que despertam o desenvolvimento da nossa sexualidade.
Ainda a respeito da linguagem do livro, algum crítico mais apressado poderia afirmar que muitos contos se aproximam do surrealismo, com imagens desconexas e justapostas, evidenciadas principalmente no conto Menina chinesa:
Quando eu tocava piano nas praças verdes, era sempre outono. Ainda havia crianças negras brincando de amarelinha. Eu esperava a mudança dos ciclos. O retorno da primavera. Só tocava os noturnos e as rapsódias.
No teclado de um velho piano, a dualidade das cores, o Yin e o Yang em harmonia. A cada acorde, saltavam das cordas as folhas secas em notas perfumadas. (Farias, 2005:15).
Porém, identificar nessa linguagem, e na sua atmosfera de sonho, a marca do surrealismo ainda não é exato, e talvez colocasse o livro num limite anacrônico, pois a realidade política, estética e social da contemporaneidade é muito diferente daquela que proporcionou o surgimento do Manifesto do Surrealismo de André Breton. Frida Kahlo disse certa vez não saber que era surrealista até o dia em que Breton esteve no México e disse que ela era uma surrealista. Kahlo rejeitava a identificação de suas pinturas com aquele movimento, dizendo que era apenas mexicana. Portanto, sejamos menos apressados, pois se poderia encontrar surrealismo até mesmo em autores anteriores à época de André Breton, como na prosa libertina do polêmico Marquês de Sade e na poesia simbolista de Arthur Rimbaud (para ficar apenas na tradição literária francesa). Eu diria que, de um modo geral, é mais exato perceber nos contos uma aproximação com o universo fantástico e debochado de nossa literatura de cordel. E poderíamos pensar ainda no nome do cordelista Zé Limeira, para dar um bom exemplo. Aliás, se considerarmos o cruzamento dos sentidos (sinestesia) que se tem no trecho acima (“notas perfumadas”: audição/olfato), a musicalidade buscada em aliterações (“crianças negras brincando”) e a subjetividade instaurada pelo verbo em primeira pessoa, somos levados ainda a identificar um caráter simbolista presente em Menina Chinesa. Em resumo, como bem adverte o autor na introdução do livro: “não ando em linhas retas”.
Além do título, que sugere a idéia de ser uma publicação para crianças, os desenhos de Hideraldo Montenegro espalhados pela obra reforçam a irônica referência aos livros infantis. Importa notar que a infância, Deus e os dogmas religiosos são temas recorrentes nas narrativas de A trágica morte da Patinha e outros contos. Esses temas se entrelaçam no conto O temor a Deus, que tem a pedofilia como base narrativa. Aqui, o desenho de Hideraldo Montenegro estabelece um diálogo perturbador com a história do religioso pedófilo, ao mostrar um rosto agigantado, que parece ser o de um índio, olhando com desconfiança para um padre. Esse desenho é inquietante ao fazer lembrar que durante a catequização dos índios, há séculos, ainda não havia Estatuto da Criança e do Adolescente nem DPCA.
Entre os 12 contos que trazem um narrador em primeira pessoa, está um que retoma o caráter didático-moral dos contos de fada para romper com expectativas que nos foram incutidas ao longo do contato com esse tipo de narrativa. Aliado a isso, o conto Meu príncipe encantado reproduz de forma irônica aquelas reflexões rasteiras que freqüentemente lotam nossa caixa de e-mails, enviadas por aquele/a amigo/a mais “sensível” e carente ― e necessitando de ler, com urgência, A náusea, de Jean-Paul Sartre. Tanto em Meu príncipe encantado como no conto Vivendo entre tubarões, o sentimentalismo vulgar e a perspectiva existencial estreita das mensagens de auto-ajuda recebem um golpe de desilusão irônica, repetindo suas metáforas batidas e culminando com reflexões que, ao contrário do otimismo tolo das mensagens de auto-ajuda, apontam para a crueldade da vida real, conduzidas divertidamente por uma paródia daquela linguagem de aconselhamento. Esse aspecto paródico nos leva imediatamente a pensar na característica predominante da arte pós-moderna, identificada por muitos teóricos: a apropriação e reelaboração irônica de estilos anteriores. No caso de A trágica morte da Patinha e outros contos, vale salientar que a paródia que a obra traz não é desprovida de um olhar crítico sobre nossas crenças e sobre nossa moral. Isso nos oferece argumentos para discordar das acusações de Jameson de que a paródia na arte pós-moderna se apresenta acomodada e estéril, como “uma estátua sem olhos”
[2].
A cegueira é lembrada na obra, mas como uma metáfora que nada lembra a imobilidade alienada da “estátua sem olhos” de Jameson. O conto Rosas Vermelhas nos apresenta uma personagem cega, vendedora de flores. Talvez pudéssemos encontrar aí um diálogo com o famoso filme, considerado a obra-prima de Charles Chaplin, Luzes da Cidade (City Lights, 1931). Contudo, o cotidiano duro de Sulamita, ainda mais endurecido por uma velhice de miséria, põe a personagem em extremo contraste com o romantismo da vida da florista cega que Chaplin criou, nem tem aquele final redentor. O conto Rosas Vermelhas forma uma espécie de trilogia com o conto anterior (A xoxota azul) e o seguinte (O homem invisível), não apenas através do entrecruzamento de personagens nas narrativas, mas principalmente com a ênfase em aspectos da visão: a cor, a cegueira e a (in)visibilidade. Esses três contos finalizam a obra de forma bastante significativa, fechando um círculo que começara, no primeiro conto, tendo Deus como referência, e, de acordo com o mito Bíblico, foi Ele quem criou a luz na escuridão vazia do universo e, portanto, permitiu a visibilidade das coisas.
Em O homem invisível, o narrador, por vezes, nos revela que não é tão cúmplice quanto à verdade da história que está contando: “Um homem solitário que, por vaidade, guardou para si todos os segredos sem fazer anotações ou contar com um simples assistente nas suas experiências. Era, sem dúvida, um cientista maluco.” (Farias, 2005:78 ― grifo nosso).
Em A xoxota azul, a protagonista é uma prostituta que descobre nas cores uma forma de reacender o interesse dos homens por ela. Lidando com a questão do voyeurismo e dos fetiches, a narrativa alude a um imaginário que transforma os corpos em objetos, passíveis até de serem pintados para atrair a atenção: “Com a chegada da temporada de caça aos estrangeiros, Adriene, que ocultou seu segredo das colegas, mostrava as fotos aos clientes, que pagavam até adiantado pela experiência de ver uma xoxota azul.” (Farias, 2005:73). Adriene é sobrinha da florista cega do conto seguinte, e mais adiante, no último conto, temos um momento da narrativa em que a velha cega é a única a “ver” aquele “cientista maluco” que tinha conseguido realizar o antigo sonho de se tornar invisível. O cruzamento dessas três personagens põe em ênfase três existências “invisíveis” para a sociedade: a prostituta, a velha e o louco.
Portanto, em A trágica morte da Patinha e outros contos, Fernando Farias não se abstém de apresentar um olhar decepcionado sobre a sociedade, embora este olhar esteja disfarçado pelo riso, como o personagem do conto Homem não chora, que justifica suas lágrimas dizendo: “É que eu estava cortando cebolas”. Vale lembrar aqui as palavras de outro escritor: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”.

* João B. Martins de Morais (Johnny Martins) é Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE e Doutorando em Literatura e Cultura pela UFPB.
[1] “C’est ainsi que nous rions du prévenu qui fait de la morale au juge, de l’enfant qui prétend donner des leçons à ses parents, enfin de ce qui vien se classer sous la rubrique du «monde renversé»”. BERGSON, Henri. Le rire: essai sur la signification du comique. Paris: Presses Universitaires de France, 1964, p.72.
[2] JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000, pp. 44-45.

0 comentários:

Minha lista de blogs

About This Blog

About This Blog

  © Blogger template Brooklyn by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP